Há quarenta anos o diálogo
ecumênico internacional tem acolhido Maria como tema de sua agenda teológica. O
que poderia ser, aparentemente, um tema-limite se tornou oportunidade de
encontro, estudo e aprimoramento de nossas compreensões sobre a redenção e a
graça, Cristo e a Igreja. Isto se verificou especialmente no diálogo
católico-reformado e católico-evangélico, em geral, já que as Igrejas do
Oriente (armênia, copta, antioquena, assíria e greco-ortodoxa) reconhecem
conosco o ministério específico da Mãe de Jesus e a veneram liturgicamente.
A teologia católica e o magistério
eclesial sabem que há enfoques biblicamente coerentes para a mariologia, dentro
das coordenadas dogmáticas da Teologia da Graça, da Soteriologia e da
Eclesiologia. Isto, tendo por centro a pessoa e o mistério de Jesus Cristo –
autor da graça, redentor universal e único mediador entre Deus e a humanidade
(cf. 1Tm 2,4-5; Hb 12,2.24). Situar Maria dentro dessas coordenadas é
garantir-lhe o justo lugar, ajudando não só os evangélicos – mas também os
católicos – a compreenderem o papel de Maria no plano de Deus, como primeira
dentre os remidos do Novo Testamento e discípulo fiel do próprio filho Jesus.
Importa recordar especialmente
que, para a doutrina católica, Maria não é uma personagem biográfica, mas sim
uma figura protológica: a teologia e a liturgia não vêem Maria do ponto de
vista histórico-factual, com base na sua suposta biografia e trajeto
individual; mas a contemplam do ponto de vista histórico-salvífico, com base na
sua exemplaridade de serva e discípula, enquanto typos, ícone ou figura exemplar
da própria Igreja. Isto se verifica nas narrativas bíblicas em que Maria
representa a comunidade crente, fiel e discipular, expressando em sua pessoa as
atitudes exemplares de fé, esperança e caridade. Não estamos, portanto, diante
de um dado biográfico, mirando a uma mulher heróica de infinitos méritos, mas
sim diante de uma figura protológica em quem se antevê a plenitude da graça:
Maria anuncia, desde seu lugar no plano da salvação, o operar salvador de Deus
para toda a humanidade, a começar da comunidade dos discípulos – onde ela mesma
se insere (cf. Mc 3,33-35; At 1,14).
É nesta perspectiva que se
fundamenta a dogmática católica, que vai traduzir os grandes momentos de nossa
salvação como eventos já realizados – pela graça de Cristo – na pessoa desta
mulher que foi sua mãe e também discípula. Semelhantes a ela, também nós fomos
lavados na mácula original pelas águas do Batismo (1Cor 6,11; Ef 1,4; Tt 3,5:
imaculados); também nós fomos elevados pela graça e um dia seremos plenamente
assumidos na glória de Deus (Mt 25,31-34; Jo 14,2-3 At 7,55-56; Col 3,4:
assuntos na glória). Nela a Igreja vê seu próprio rosto, em luz escatológica,
como num ícone excelente: serva, discípula e mãe são qualidades da Igreja,
exemplarmente percebidas em Maria (cf. Lc 1,38; Jo 2,5; Jo 19,27) (...)
Reconhecer Maria biblicamente
como protologia (figura exemplar) da Igreja é fundamental para nossa
compreensão de sua pessoa e de seu duplo ministério no plano de Deus, como mãe
do Redentor e, em seguida, sua discípula. “Grande por ter sido a mãe de Jesus;
maior ainda por ter se tornado discípula do próprio filho” – dizia Agostinho.
Seja na Bíblia, seja na liturgia, Maria está sempre referida a Jesus, como lua
voltada para o sol, de quem recebe luz e a partir de quem a reflete. Esta é
abordagem da Lumen Gentium, da encíclica Marialis cultus e do Documento de
Aparecida.
Inclusive os dogmas marianos –
com sua linguagem litúrgica inspirada na teologia da graça – são todos
referidos soteriologicamente a Jesus. Cada dito sobre Maria preserva uma
verdade sobre o Verbo Encarnado, de quem ela foi mãe, sem deixar de ser a primeira
servidora (cf. Lc 1,38.48). Quando lemos os dogmas marianos referidos
unicamente a Maria, caímos no equívoco de interpretá-los de modo excludente,
como se Maria fosse sua chave de leitura suficiente. Em vez disso, devemos ler
os dogmas marianos com referência a Jesus (sua pessoa e mistério): então
descobrimos que neles se inclui a humanidade redimida, pois sua chave de
leitura é a obra universal da graça, que Jesus consumou no mistério pascal.
A falta
desta compreensão – além de problematizar a devoção mariana em geral – acarreta
olhares limitados sobre a pessoa de Maria, incapazes de perceber sua conexão
com o mistério da salvação realizado por Jesus Cristo. É daí que surgem
equívocos e incoerências, altamente complicadores para a catequese, o culto e a
devoção popular. Por outro lado, olhar Maria sob a luz de Cristo – como figura
exemplar da Igreja, em quem já se realiza a plenitude escatológica da graça –
nos aproxima das narrativas bíblicas, esclarece o sentido pascal das
celebrações marianas e confere coerência doutrinal à devoção das comunidades.
Logo,
podemos afirmar que a compreensão bíblica e soteriológica de Maria – sempre
referida ao filho Jesus – não só favorece a unidade dos cristãos com relação à
Mãe do Senhor, como esclarece aos próprios católicos o ministério desta mulher
no plano de Deus e seu lugar singular na fé da Igreja. Afinal, antes de ser
considerada uma “santa católica”, Maria é acima de tudo uma “mulher evangélica”
– no sentido pleno no termo.