domingo, 24 de outubro de 2010

Quando a devoção faz mal

Certa vez, tive uma afta na boca. Recomendaram-me que aplicasse tintura de própolis, diluída em 70% de água. Não entendi a razão. Pensei comigo: se é bom, porque diluir? Felizmente, descobri a resposta antes de usar o remédio. Se utilizasse o concentrado, a tintura queimaria a minha mucosa bucal, em vez de curá-la. Guardei esta lição prática: até o bom remédio, natural, com poucas contra-indicações, deve ser usado com equilíbrio, na medida certa. Caso contrário, provoca mais malefício do que cura.
Este princípio tão simples vale também para a devoção. Nós, católicos, reconhecemos que as práticas devocionais são boas, pois nos levam a viver em sintonia com Deus e a seguir Jesus intensamente. No entanto, todo exagero faz mal. É como o bom remédio, fora da medida adequada: pode destruir em vez de curar.
Atualmente, presenciamos um exagero de devoção no catolicismo. Em alguns casos, o remédio se parece com uma doença. Simplesmente, porque não há limites. E tudo que se faz sem critérios e limites, corre o sério risco de decair em extremismos. No campo religioso, isso se manifesta na intolerância e na miopia espiritual. As pessoas passam a condenar a todos o que não pensam como elas e são incapazes de se auto-criticarem. Mesmo que estejam recheadas de boas intenções.
Há alguns dias recebi um canto sobre Maria. Para quem está mergulhado neste excesso de piedade, parece sublime, belo, perfeito. Intitula-se: “A primeira que comungou”. Veja:
A primeira que comungou foi a Virgem Maria
A primeira que recebeu Jesus no coração
A primeira que anunciou foi a Virgem Maria
A quem gerou na fé o profeta que de Isabel nasceu.
Foi por ela que aconteceu a primeira adoração
E quando os magos a encontraram
Houve a primeira grande exposição.
Mãe capela do santíssimo sacrário do amor
Expõe para nós teu filho
Mãe capela da santíssima morada do senhor
Expõe para nós teu filho
Primeiro ostensório do Senhor.

O Concílio Vaticano II, ao promover uma grande renovação da Igreja, pediu que voltássemos à fonte do Evangelho e das primeiras comunidades cristãs. No capítulo 8 do documento sobre a Igreja, intitulado “Lumen Gentium”, apresenta a figura de Maria na dosagem saudável. Diz que Maria deve ser compreendida em relação a Cristo e à Igreja. A partir dessa orientação, confirmada anos mais tarde por um lúcido documento do Papa Paulo VI sobre o Culto a Maria (Marialis Cultus), se busca uma devoção mariana equilibrada, bem dosada.
Infelizmente, não é o que se vê na música acima. O uso exagerado da analogia, ultrapassando o bom senso, leva a afirmações que não são corretas. “Comungar”, no sentido de participar da ceia do Senhor e receber seu corpo e sangue, aconteceu em primeiro lugar com os discípulos de Jesus, antes de sua paixão. Se Maria esteve lá, também tomou parte deste momento que resume a vida, morte e ressurreição de Jesus. Mas dizer que ela foi a primeira que comungou extrapola o bom senso e não retrata o que aconteceu.
Devemos usar com cuidado as analogias ou as figuras de linguagem, para não dizer coisas ambíguas, que escandalizam outros cristãos, inclusive os próprios católicos. Não seria uma imagem inadequada e anacrônica (fora do nosso tempo), dizer que Maria é o primeiro ostensório? Tal afirmação não tem base bíblica e nem raízes nos Pais e mães da Igreja dos primeiros séculos.
A linguagem devocional, quando usada sem limites ou critérios de verificação, acaba produzindo um fenômeno parecido com os termos esotéricos: só pode ser compreendida por quem está dentro do movimento dos iniciados. Aos outros, soa como algo estranho ou sem sentido. Para quem está mergulhado num devocionismo, não há limites em usar as figuras de linguagem. E aqui está o grande problema. Lentamente, Maria se torna mais importante do que Jesus. E o Jesus da devoção também está distante do nosso mestre e Senhor, apresentado nos Evangelhos.
A devoção exagerada não cura. Ao contrário, lentamente leva a terríveis desvios.
Maria merece nosso respeito. A devoção a ela é legítima. Mas não pode extrapolar o bom senso. Cultivemos a lucidez!
Maria e Jesus agradecem...  A humanidade também.

Ir. Afonso Murad

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Maria e a política

                                                                                                   Texto do Padre Zezinho, SCJ


Não consta que Maria fosse uma jovem triste nem que cantava ou dançava. Provavelmente, se comportou como as jovens judias de seu tempo. Aliás, sabe-se tão pouco sobre ela que corremos dois riscos: idealiza-la perfeita demais, incapaz de rir ou brincar; ou como a jovem dedicada somente à oração. É verdade que, por seu chamado especial, foi diferente das demais mulheres. Afinal, não é sempre que se concebe um filho em suas condições. Mas foi igual às outras no aspecto mais comum da feminilidade e no seu modo bonito de ser mulher. Até aposto que ria, cantava e dançava. O Evangelho traz alguma coisa a respeito.

Lucas diz (cap. 1, 39-56) que ela acompanhou os últimos três meses de gravidez da já idosa Isabel e a intimidade do parentesco as fez cúmplices do mistério que as envolvia. Quem não crê achará inverossímil Isabel e Zacarias terem um filho especial e Maria ter um filho de Deus. Mas é como diz Isabel: “Feliz aquela que acreditou”. Maria foi ajudar Isabel, que, no dia do encontro, demonstrou saber do importante segredo da sua parenta. Maria não se conteve: agora poderia repartir sua alegria de poder ser mãe tão especial, já que os outros a achariam louca e pretensiosa. E ali mesmo, segundo Lucas, ela improvisou um canto, a partir do cântico de Ana, mãe de Samuel (1 Sm. 2, 1-10), e de outros que conhecia. Quem meditava as coisas de Deus e as guardava no coração (cf. Lc. 2, 19) era muito bem capaz de improvisar uma oração, como a rezada por Maria diante de Isabel. Maria cantou um pouco do livro do Deuteronômio, de Samuel, de Isaías e dos Salmos 111, 107, 103, 98 e 89.

O canto de Maria tem força teológica. Fala de um Deus misericordioso que pensa em todos os homens e mulheres, chama a todos, mas dá tarefas e missões especiais a alguns, sem, com isso, amar de maneira limitada; de um Deus justo que defende os pequenos e oprimidos, tira o poder da mão dos injustos e, um dia, dá chance aos pobres e pequenos, enquanto mostra, a quem tem tudo, a experiência de não ter. Teria sido também um canto político, improvisado por uma jovenzinha desinformada? Ou cheio de fé, ensaiado por alguém inspirado nas lutas e no sofrimento de seu povo? Se Maria cantou, então mostrou conhecer muito bem os erros e acertos de Israel, as profecias e as constantes presenças de Deus na história de seu povo. Trata-se, pois, de excelente oportunidade de refletirmos.

É difícil imaginar Maria inserida em política partidária ou indiferente à sorte de seu povo e incapaz de compreender o peso de sua missão. Seu canto tinha alta teologia e política, mas também amor e misericórdia. Só não vê quem não quer. A quem idealiza apenas como a mãe de um grande político judeu, o canto é um prato cheio; mas, para os que a imaginam como uma jovem mãezinha assustada, é mais difícil negar que ela tenha cantado. Maria amou a seu Deus, seu tempo e seu povo. E, nesse contexto, não é provável que ela tenha contado a Lucas o ocorrido naquele encontro: que cantou a experiência de ser mãe de alguém que anunciaria um novo tempo e uma ordem para o mundo. É mais um motivo para admirarmos essa mulher.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Maria com cuidado

Há 25 anos leciono Comunicação Religiosa. Isso não me faz mais sábio nem mais culto do que outros padres e bispos. Apenas me autoriza a sugerir expressões e linguagem que cheguem com mais clareza ao povo de Deus. Já errei usando termos confusos, mesmo depois de padre e mesmo lecionando Comunicação. Ninguém é tão perfeito que não cometa alguma imperfeição ao falar ou escrever. Por isso digo aos meus alunos que falem de Cristo e de Maria com cuidadosa escolha de palavras. Se tiverem o que dizer, digam com clareza. Sim, a Igreja ensina isso! Não, a Igreja não diz isso! Um deles escrevera que Maria é santíssima porque é mãe da SSma. Trindade e veio debater comigo. Desafiei-o a me mostrar uma só passagem da Bíblia ou dos documentos da Igreja, onde Maria é chamada de Mãe da Santíssima Trindade. Não achou.

Na minha juventude já fui corrigido algumas vezes ao falar de Maria. Era presidente da congregação mariana e minha devoção era tanta que, no meu entusiasmo dizia coisas que a Igreja jamais diria. Diga-se de passagem que também lia alguns textos marianos nada serenos. Davam ao terço tanta garantia que praticamente não sobrava mais nada nem ninguém para Jesus Cristo salvar... A vinda do Concílio Vaticano II foi me abrindo os olhos. A essas alturas já era sacerdote. Lá, descobri a fundamentação dos muitos títulos dados a Maria. Mais tarde em Puebla o discurso ficou ainda mais direto. Os documentos dos papas nesses últimos 40 anos também me ajudaram a pensar em Maria com o máximo de cuidado. Tenho tentado dizer isso aos pregadores quando sou perguntado sobre Maria: “ Não ousemos ir mais longe do que a Igreja foi”.

Quando escrevi a canção Senhora e Rainha, onde acentuo que Maria “ “não é deusa nem mais do que Deus, mas depois de Jesus ninguém foi maior do que ela neste mundo” estava traduzindo o Concilio Vaticano II, que diz isso com toda a clareza. Para nós católicos ela é verdadeira mãe de Deus e é membro super-eminente da Igreja. É modelo de quem quer seguir Jesus. Há tanto o que dizer em favor de Maria que nos faltam palavras também sobre ela, da mesma forma que faltam quando falamos do seu Filho que é maior do que ela, porque Jesus Cristo é Deus e ela não é.

Continuo ouvindo em algumas pregações de rádio e de televisão que Maria é mãe da SSma. Trindade. Tenho dito a quem usa tal expressão que tome cuidado ao dizê-la, porque não é clara. Maria é mãe do Filho de Deus, e por isso a chamamos de Mãe de Deus. Mas a Igreja nunca disse que ela é mãe do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Mãe da Trindade ela não é. Podemos chamá-la de Nossa Senhora da SSma Trindade porque ela é filha, é mãe e é esposa, mas não das três pessoas. Não é esposa do Filho, nem é mãe do Espírito Santo, nem do Pai. É filha do Pai, mãe do Filho de Deus encarnado e esposa do Espírito Santo. As palavras são pequenas demais para dizer da relação de Deus conosco. Com Maria, que foi geratriz do Verbo encarnado, faltam-nos os adjetivos. Afirmamos que desde todo o sempre o Pai gera o Filho, mas Maria não é mãe do Filho de Deus desde todo o sempre. Ela não existiu desde toda a eternidade. Quando o Filho de Deus se encarnou, aqui, neste mundo, ela foi a mãe dele; mas não antes. Por isso, as palavras “Mãe da Trindade” podem confundir. É melhor explicá-las. Sem explicação leva muita gente a dizer que Maria é mãe das três pessoas da Trindade. E ela não é .

Quando alguém entra em debate comigo sobre este tema, peço para reler a frase que ele disse. Depois mostro mais de 200 passagens com os títulos dados a Maria. Nunca a Igreja diz que ela é mãe da três pessoas da SSma. Trindade. Nem poderia! No ventre dela quem esteve foi o Filho de Deus encarnado. Mas como Jesus diz que Ele e o Pai são um (Jo 10,30) é claro que Maria, ao carregar seu Filho no ventre, carregou o mistério que ele trazia. Nem assim Igreja diz que ela gerou a Ssma. Trindade. Isso, a Igreja não diz. É por isso que a Igreja pede no número 158 que se evitem os falsos exageros ou as estreitezas. Meu conselho aos amigos e alunos é que tomemos cuidado ao proclamar a grandeza da humilde Maria. Nossas frases precisam ser claras e não devem deixar margem a dúvidas.

Neste mundo ninguém melhor do que ela assumiu o mistério da Ssma.Trindade em sua vida, porque ninguém esteve tão intimamente ligado ao Filho de Deus quanto ela. Mas havia limites e Maria sabia disso! Ela continuou a vida inteira “ serva do Senhor”, mesmo sendo mãe do Filho de Deus. E é isso que faz Maria tão especial e tão digna de nossos elogios. Imagino que ela seja a mais interessada em que não a louvemos acima do que ela foi e é.

Texto: Padre Zezinho, SCJ.