terça-feira, 8 de setembro de 2009

Maria em Lucas: síntese(2)

(Reproduzo aqui o texto já publicado no mês de março, para facilitar o acesso ao blog para os alunos do ITESP)Lucas apresenta o mais belo e diversificado perfil de Maria na Bíblia. Para o evangelista, o discípulo de Jesus é aquele(a) que ouve seu apelo, segue-o e aprende com ele no caminho (Lc 5,10s; 13,22). Ser aprendiz de Jesus significa também fazer parte de sua comunidade, peregrinar na fé e participar da causa de Jesus, que é o Reino de Deus. O seguidor de Jesus é aquele que “ouve a Palavra de Deus num coração generoso, conserva no coração e frutifica na perseverança” (Lc 8,15: explicação da parábola da semente e dos tipos de terra). Ora, a grande novidade de Lucas é apresentar Maria como a imagem viva do discípulo(a) de Jesus.
Podemos resumir as seguintes características de Maria no terceiro evangelista: a seguidora de Jesus, a peregrina na fé, o sinal da opção de Deus pelos pobres e a mulher contemplada pelo Espírito Santo.

(1) Seguidora de Jesus: Maria realiza as três qualidades básicas do discípulo fiel. Ela acolhe a palavra de Deus com fé (relato da anunciação: Lc 1,28-38), conserva a palavra no coração e a medita, confrontando-a com os fatos (Lc 2,19 e Lc 2,51) e frutifica esta palavra viva; sendo uma pessoa de intensa fé (“feliz de você que acreditou”: Lc 1,40) e a mãe do messias (“bendito é o fruto do teu ventre” em Lc 1,42). Somente Lucas relata a cena da mulher na multidão que grita: “Feliz o ventre que te gerou e o seio que te amamentou”, em claro elogio à maternidade biológica. Mas Jesus lhe responde: “Antes, felizes os ouvem a palavra de Deus e a realizam” (Lc 11,27). Antes de ser uma crítica à Maria, este texto revela sua real importância. A maternidade é conseqüência e expressão de sua fé. Neste sentido também, Lucas refaz a expressão final do (des)encontro de Jesus com os familiares, com a expressão: “Minha mãe e meus irmãos são os que ouvem a Palavra de Deus e a realizam”(Lc 8,21). Há portanto uma prioridade da fé, enquanto adesão à Jesus e à sua causa, sobre o simples fato de ser mãe de Jesus.

(2) Peregrina na fé: Somente Lucas relata as palavras de Simeão a Maria: “Quanto a ti, uma espada transpassará tua alma” (Lc 2,25). Não se trata de uma alusão ao sofrimento de Maria na hora da cruz, pois nos evangelhos sinóticos Jesus morre sozinho e Maria não está incluída entre as mulheres que o observam, de longe. A espada tem um sentido metafórico. Alude a Jesus, que é a palavra-gesto do Pai, conforme Hb 4,12s: "A Palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes. Julga as disposições e as intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença". Maria, como os outros aprendizes de Jesus, não sabia tudo. Foi fazendo descobertas no correr de seu caminho espiritual. Neste sentido, o relato da perda no templo confirma que Maria e José não entendem naquele momento as palavras e os gestos de Jesus (Lc 2,41-50). Por isso mesmo, ela precisa refletir e buscar o sentido dos fatos. A interpretação nova que Jesus dá à Lei, ao sábado, ao templo e às tradições questionava seus seguidores, trazia conflitos e lhes provocava mudanças na sua visão religiosa. Era uma espada! Maria passou pelo crivo da espada da Palavra, e cresceu com isso.

(3) Sinal da opção de Deus pelos pobres: Lucas é o evangelista que mais desenvolve a dimensão social da Boa Nova de Jesus. Coerente com esta orientação, Maria é apresentada por ele como uma mulher pobre, da desconhecida terra de Nazaré da Galiléia. Jesus nasce num lugar sem recursos e é envolvido em faixas (Lc 2,12). Como são pobres, os pais de Jesus oferecem pássaros no templo, em vez do cordeiro (Lc 2,24). O cântico de Maria, chamado “Magnificat” resume, de forma poética, a proposta de Jesus nas Bem-Aventuranças (Lc 2,46-55 em comparação com Lc 6,20s). Sinaliza, com clareza, que a Boa Nova de Jesus propõe uma mudança nas atitudes das pessoas e nas estruturas sociais. Deus se volta sobretudo para os mais pobres, pois são os que mais necessitam. Sua misericórdia permanece para sempre.

(4) Mulher contemplada pelo Espírito Santo: Em Lucas, Jesus começa a missão recordando a profecia de Isaías: “O Espírito de Deus está sobre mim” (Lc 4,14). É o Espírito que age em Jesus e nos seus seguidores, após pentecostes. Maria é apresentada então como a mulher sobre a qual “a sombra do altíssimo” se estende, para possibilitar a concepção de Jesus. Ela também participa da comunidade que prepara a vinda do Espírito (At 1,14). Portanto, Maria é “contemplada” duplamente pelo Espírito Santo: no nascimento de Jesus e no nascimento da comunidade cristã, após a ressurreição de Jesus.

A partir de Lucas, descobrimos traços originais da figura de Maria. O “sim”, pronunciado com inteireza no início da juventude, se renova no correr da vida. Ela passa por crises e situações desafiadoras, que a fazem crescer e caminhar sempre mais na adesão ao Senhor. Maria nos recorda que Deus escolhe preferencialmente os simples e humildes para iniciar o Reino de Deus, esta recriação da humanidade e dos cosmos. A partir do Magnificat, ouve-se o apelo por novas relações interpessoais, econômicas, políticas, culturais e ecológicas. Maria simboliza o ser humano em construção, aberto a Deus, tocado pelo Espírito Santo, cultivando um coração solidário.
Essas características marianas inspiram atitudes de vida de cada cristão e da Igreja-comunidade. Sentimo-nos chamados a sermos discípulos fiéis de Jesus, ouvindo, acolhendo, guardando no coração e praticando sua Palavra. Renovamos o nosso “sim”, mesmo no meio das crises, pois sabemos que somos “bem-amados de Deus” (Ef 1,6). Alimentamos, como Maria, um coração agradecido a Deus, que O louva por todo o bem que Ele realiza em nosso meio e através de nós. E nos empenhamos pela solidariedade e pela cidadania planetária, construindo uma sociedade mais próxima do projeto de Deus.
Texto: Ir. Afonso Murad