terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Mariologia: plano de curso

Apresento aqui os elementos básicos de um Plano de Curso de Mariologia para a graduação, que utilizo nas Faculdades de Teologia onde atuo. Se você tiver outra proposta, partilhe conosco neste blog.
Ementa
O curso de Mariologia oferece aos alunos uma visão ampla e articulada sobre a pessoa de Maria, a mãe de Jesus, no horizonte da cristologia e da eclesiologia. Reflete sobre a figura de Maria na bíblia, no dogma e no culto. Apresenta dados para enriquecer o diálogo ecumênico e a prática pastoral, articulados com a espiritualidade.

Objetivos centrais
Identificar os elementos bíblico-teológicos de Maria nos evangelhos de Lucas e João.
Compreender os dogmas mariais da maternidade divina, virgindade, imaculada conceição e assunção no contexto em que foram tematizados e reinterpretá-los na teologia contemporânea.
Justificar o lugar de Maria no culto cristão, no horizonte da comunhão dos santos, apontando sua legitimidade e limites.
Compreender teologicamente o fenômeno das Aparições.

Unidades de Ensino-Aprendizagem
1. Introdução
Perguntas sobre Maria, advindas da pastoral, da teologia ou da existência
Breve história da mariologia/marialogia
Para além do maximalismo: tarefas da mariologia

2. Maria na Sagrada Escritura
Maria no Antigo Testamento?
A nova família de Jesus: o enfoque de Marcos e Mateus
Perfeita discípula e peregrina: Maria em Lucas
A mãe da comunidade, no quarto evangelho
As interpretações de Apocalipse 12.

3. Os dogmas marianos
Passagem da bíblia ao dogma
Problemática teológico-pastoral dos dogmas
Maria, Mãe do filho de Deus encarnado
A polêmica sobre a Virgindade de Maria
Maria, toda de Deus: Imaculada
A glorificação de Maria: Assunção

4. Maria na devoção e na liturgia
Principais manifestações devocionais a Maria
O fundamento: a comunhão dos santos
Orientações teológico-pastorais

5. Contribuições recentes do magistério da Igreja:
Lumen Gentium 8,
Marialis Cultus, Redemptoris Mater,
Documento de Aparecida

6. As aparições
Leitura interdisciplinar do fenômeno
Critérios de discernimento

7. Síntese: Maria nas Igrejas Cristãs

Autoria: Ir. Afonso Murad

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Mariologia: conceito

A mariologia (ou marialogia) é a disciplina teológica que estuda o lugar de Maria no projeto salvífico de Deus e sua relação com a comunidade eclesial. Está presente sobretudo na Igreja católica.
Enquanto saber teológico, a marialogia é uma reflexão sistemática, crítica e sapiencial que parte da fé e à fé retorna. É sistemática porque articula e organiza as informações. Sendo crítica, emite um parecer sobre a forma como o cristãos católicos reverenciam Maria, em relação com o conjunto da fé cristã. Visa purificar aquilo que é exagerado ou anacrônico. Por fim, exercita a sabedoria, ao equilibrar a contribuição da tradição com as questões atuais.
A melhor marialogia é aquela que nos ajuda a seguir a Jesus com mais empenho e a compreender melhor aquilo que cremos.
A reflexão teológica sobre Maria se faz como uma escada de três degraus.
(1) No nível básico está o estudo sobre Maria de Nazaré na Bíblia. Os dados bíblicos sobre a mãe de Jesus são imprescindíveis, para não se construir uma marialogia sobre o vazio. Afinal, toda reflexão teológica baseia-se na Sagrada Escritura.
(2) No segundo nível se situam os dogmas marianos, que condensam grande parte da reflexão eclesial sobre ela, sem esgotá-la. Há quatro dogmas católicos sobre Maria: Maternidade divina, virgindade, imaculada conceição e assunção.
(3) O terceiro nível corresponde o estudo sobre o culto à Maria, compreendendo a devoção popular e a liturgia. No âmbito da pastoral, o culto, especialmente nas suas manifestações devocionais, é o aspecto mais visível e pode parecer o único importante.
Os três degraus se relacionam mutuamente, mas há uma prioridade da Sagrada Escritura sobre o dogma e a devoção. Caso contrário, já leremos os textos bíblicos sem nos deixar tocar por eles, e somente confirmaremos o que está proclamado nos dogmas.
A elaboração da marialogia atual exige, em primeiro lugar, uma boa base bíblica. Isso significa conhecer os textos sobre Maria, relacionando-os com o autor bíblico e sua teologia. Em segundo lugar, necessita percorrer a história da reflexão de fé da Igreja, para compreender como surgiram os dogmas marianos, e situá-los em seu contexto.
Além disso, para pensar sobre o sentido de Maria, o mariálogo deve relacioná-lo com outros campos da reflexão teológica que falam de Jesus, da Igreja, do mistério do ser humano à luz da fé e de sua salvação (cristologia, eclesiologia, a antropologia teológica e soteriologia). Ou seja, ele(a) passeia pelas disciplinas teológicas e com elas vai tecendo a mariologia.
O grande problema de livros, artigos, sites e blogs de marialogia reside num horizonte teológico estreito, que parece ver somente Maria, com exclusividade e parcialidade. Ora, se você vai escrever sobre Maria no evangelho de Lucas, deve conhecer bem a teologia do terceiro evangelista. Se alguém vai refletir sobre o dogma da Assunção, deve ir a fundo na disciplina teológica da escatologia, que trata sobre o último e definitivo em todas as coisas, inclusive a morte e a ressurreição. Não basta que seja uma reflexão recheada de citações dos Padres da Igreja, dos Concílios e dos Papas. Ela precisa ser consistente e abrangente.
Por fim, a reflexão atual sobre Maria está sintonizada com peregrinação existencial e espiritual dos homens e mulheres de hoje. Isso requer do teólogo uma aguçada sensibilidade histórica e dialogal. Ele(a) está atento não somente aos livros publicados, mas também aos fatos significativos e às suas interpretações. Assim, atualiza e reinterpreta os dados bíblicos-teológicos sobre Maria à luz dos sinais dos tempos e de novas práticas eclesiais.
Leia mais em: Afonso Murad. Maria, toda de Deus e tão humana, introdução
Figura: Ir. Anderson, MSC.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Bodas de Caná: a ação simbólica de Maria

Continuemos a percorrer o texto da cena da Caná. Vejamos os símbolos no relato de Jo 2,5-11. Assim, pode-se compreender o sentido profundo da ação de Jesus e da intervenção de Maria.
A ação e a palavra de Maria (v.5): É comum no quarto evangelho que haja momentos de impasse e “mal entendido” entre Jesus e seus interlocutores. Enquanto eles estão num nível de compreensão superficial, de “baixo”, Jesus fala das realidades “do alto”, mais profundas e além das aparências. É preciso dar um salto de fé, para passar de um nível ao outro. Às vezes, há discussões longas, com vários mal entendidos Assim acontece, por exemplo, nos diálogos com Nicodemos e com a Samaritana (Jo 3,1-12 e Jo 4,6-27), ou na conversa com a multidão, sobre o pão da vida (Jo 6,26-58). Jesus fala em nascer de novo e Nicodemos entende de forma literal, como se alguém tivesse que voltar ao útero materno. Jesus anuncia a água viva à Samaritana, e ela pensa na água do poço. Jesus fala do pão como “minha carne” e eles se escandalizam.
Ao contrário dos outros interlocutores, Maria rapidamente salta para o nível de fé, sem discutir com Jesus. Entende o que ele quer. Compreende que não se trata somente de resolver um problema de falta de vinho, de atender a uma necessidade concreta. Mas sim, o que este fato vai ajudar as pessoas a conhecerem melhor quem é Jesus e se posicionarem diante dele.
Maria se volta para os serventes: “Façam tudo o que ele lhes disser” (Jo 2,5). Essas palavras têm uma grande força simbólica. Você se recorda da frase de Maria ao final da anunciação, em Lucas: “Eis aqui a servidora do Senhor. Eu desejo que se faça em mim conforme sua palavra” (Lc 1,36). Segundo João, Maria não só realiza a vontade de Deus na sua vida, mas também orienta os outros a fazerem o que Deus lhes pede. Há um deslocamento do foco e uma ampliação de sentido. Da perfeita discípula e seguidora de Jesus, em Lucas, para a pedagoga e guia dos cristãos, em João.
Da água para o vinho (v. 6-10): Jesus faz o primeiro sinal de forma discreta. Nem sequer dá uma benção ou evoca o nome de Deus. Tudo na simplicidade. O bom vinho alegra as pessoas e faz a festa ficar melhor ainda. Mas por que João coloca como primeiro sinal de Jesus a transformação da água em vinho, numa festa de casamento? Porque não uma cura ou expulsão de demônios? O primeiro sinal de Jesus pretende começar a revelar quem ele é para nós. A partir do sinal, entendemos que Jesus é o vinho novo para e existência humana. Ele é capaz de transformar as situações desafiadoras em festa e alegria compartilhadas.
Nas Escrituras Judaicas, o vinho simboliza a felicidade e a abundância que acontecerá para todos, quando o Messias chegar (Ver Os 2,23s e 14,8; Am 9,13s; Is 25,6 e 62,5; Jr 31,12; Zc 9,17). No livro do Cântico dos Cânticos, o vinho lembra o desejo entre o homem e a mulher, o amor que os fascina e os une, uma imagem do grande amor de Deus pelo seu povo (Ct 1,2-4; 2,4; 4,10). Com o sinal do vinho, Jesus está dizendo que ele é o vinho novo, que o dia do Messias está chegando. Começou o tempo da graça, superando as situações de miséria e tristeza.
Cada detalhe do relato tem um sentido simbólico. As seis vasilhas de pedra, destinadas à purificação dos judeus, aludem ao número da imperfeição, da finitude humana (o seis), à frieza e dureza da lei judaica, que será superada com Jesus. O chefe da festa não sabe da origem do vinho, como os chefes judaicos não conhecem que Jesus vem do Pai. Somente os que servem sabem! As talhas são enchidas até a borda, e têm muito vinho, quase 700 litros. Isso significa que Deus nos oferece seus bens em abundância. Quem está com Jesus tem vida sobrando. Jesus é o bom vinho, guardado até o momento do início da manifestação dos sinais. Com ele, começa o tempo novo, que os evangelhos sinóticos chamam de “Reino de Deus”.
O sinal de Caná e a fé (v.11): Qual é o resultado da ação de Jesus, devido à intervenção de Maria? João nos diz que Jesus “manifestou sua glória e seus discípulos creram nele”. Jesus começa a mostrar quem ele é: não somente o carpinteiro de Nazaré, mas uma pessoa que comunica vida e alegria, como Filho de Deus. A glória para Jesus não é o poder e a fama mundanos, mas a capacidade de realizar o bem e tornar Deus conhecido e amado.
Os sinais de Jesus são uma ocasião para os discípulos exercitarem sua fé. Quem crê, vê além do sinal. O sinal não força ninguém a acreditar, só abre a porta do coração para a fé (Jo 2,11.23; 3,3, 4,54). Jesus mesmo não gosta das pessoas que só acreditam quando vêem sinais. Ele até desconfia desse tipo de fé que necessita sempre de sinais (Jo 2,23s). Jesus não gosta das pessoas que buscam milagres só para resolverem seus problemas pessoais (Jo 6,26). À medida que avança a missão de Jesus, os sinais também se mostram polêmicos.O último sinal de Jesus, que é trazer Lázaro de volta a essa vida, causa divisão entre os judeus. Uns acreditam nele, outros não (Jo 12,37), e alguns se posicionam de forma violenta, organizando-se para matá-lo (Jo 11,45-54). Portanto, os sinais são uma oportunidade para a fé, não uma prova miraculosa. Eles interpelam as pessoas. E o primeiro sinal, o de Caná, abre caminho para os discípulos entrarem na aventura da fé.
O sinal que unifica (v.12) : Depois que Jesus faz seu sinal, o discípulos crêem nele e saem juntos, com “sua mãe e seus irmãos”. O sinal de Caná une o grupo dos seguidores de Jesus em torno a ele. A partir do gesto de Caná começa a se formar o gérmen da comunidade cristã, com os discípulos, os familiares e a mãe de Jesus.
Fonte: A.Murad, Maria Toda de Deus e tão humana. Paulinas.
Imagem da Internet

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Bodas de Caná e Maria: os símbolos

A cena do Sinal de Caná está recheada de imagens, analogias e símbolos. Vamos desvendar alguns deles, para compreender melhor o sentido do gesto de Jesus e da atuação de Maria. Leia Jo 2,1-4 e acompanhe.
No terceiro dia (v.1) ou “três dias depois”: A cena de Caná está “costurada” pelo evangelista João no início da missão de Jesus. Conclui a sua semana inaugural, que começa quando João Batista aponta Jesus aos seus discípulos (Jo 1,19.29.35.43). A festa aconteceria dois dias depois do encontro de Jesus com Filipe e Natanael. Neste encontro, Jesus relembra a imagem do sonho de Jacó, da escada que liga o céu e a terra (Ver Jo 1,49-51). O céu aberto, com os anjos subindo e descendo, significa que Deus irá se comunicar conosco e nos dará sua graça. O primeiro sinal mostra que, com Jesus, começa este tempo novo de presença de Deus junto de seu povo.
A festa de casamento (v. 1-2): No tempo de Jesus, a festa de núpcias era muito importante. As famílias se uniam em torno do casamento dos filhos. Renovava-se a confiança na vida e se esperava a vinda de filhos, primeira garantia da continuidade do povo de Deus. Além disso, evocava um sentido simbólico. Os profetas usaram a imagem da união amorosa do homem e da mulher, que se celebra no casamento, para falar da Aliança, do amor de Deus e de sua intimidade com o povo eleito (Is 62,4b-5; Os 2,18-22).
Era comum oferecer um banquete na festa de casamento (Gn 29,22; Jz 14,10). Nas vilas e cidadezinhas do interior, como Caná, a festa durava normalmente sete dias (Gn 29,27; Jz 14,12; Tb 11,20). O vinho era a bebida básica, espalhada por toda a parte, pois as famílias produziam e consumiam vinho caseiro. Numa festa, especialmente a de casamento, não podia faltar vinho. A festa acabaria tristemente.
A falta do vinho e o pedido de Maria (v. 3): Maria está na festa. Jesus e seus discípulos também. Mas parece que chegaram separadamente. Então, o vinho está terminando e Maria se dirige a Jesus. Ela está dizendo: “Tenha pena deles, senão a festa vai acabar”. Há um pedido claro, não somente uma constatação. No evangelho de João, quando alguém precisa de algo, basta apresentar a Jesus sua necessidade, que ele entende. Por exemplo, o paralítico em Jo 5,7; as irmãs de Lázaro em Jo 11,3. Mas ao contrário destas pessoas, Maria não pede para si, e sim para os outros.
A resposta de Jesus (v. 4) parece indelicada e até desrespeitosa: “O que nós temos a ver com isso? Algumas bíblias traduzem com expressões ainda mais duras essa frase de Jesus: “Que queres de mim”, ou “que há entre mim e ti”. Esta frase, de difícil tradução, expressa que Jesus não deseja se envolver com o problema, e que há um distanciamento, uma diferença de percepção entre ele e Maria.
“Mulher” (v.4): Muita gente estranha porque Jesus chama sua mãe de “mulher”. Mas João está nos dizendo algo mais profundo: para Jesus, Maria é mais do que sua mãe, é mulher. O evangelista é muito sensível à participação das mulheres na missão de Jesus e na comunidade dos seus amigos. Jesus não as trata pelo nome, mas com o título de “mulher”. Maria, sua mãe, presente no início e no final de sua missão, é chamada em Caná e na cruz de “mulher” (Jo 2,4 e 19,26). Jesus denomina também “mulher” à samaritana (Jo 4,21), primeira anunciadora do messias para os não-judeus (Jo 4,28.41s). Por fim, trata da mesma forma a Madalena (Jo 20,15), a primeira testemunha da ressurreição (Jo 20,17s). Ora, os profetas usavam a imagem da mulher para representar o povo de Deus em relação ao Senhor da Aliança (Os 1,2; Is 26,17; Jr 31,4). Portanto, quando Jesus chama sua mãe de “mulher” não a ofende. Ao contrário, mostra o valor dela, como mulher e figura efetiva e simbólica da comunidade cristã.
“Minha hora ainda não chegou” (v.4): Um homem ocidental moderno imaginaria a cena de uma maneira banal. Jesus olharia para o relógio e diria que não estava no momento ainda. Mas não se trata disso. A “hora”, no evangelho de João, tem um sentido simbólico. Quer dizer o momento em que Jesus vai manifestar quem ele é, sua identidade de Filho, e comunicar de forma ímpar o amor do Pai. Isso só vai se completar na morte e ressurreição (Jo 12,23.27; 13,1; 16,32; 17,1). Ali será “a hora h”, como a gente diz. Mas, enquanto isso, cada palavra ou sinal de Jesus é uma parte dessa hora e a prepara. “Minha hora ainda não chegou” significa que Jesus acha que não é ainda o momento oportuno de começar sua missão e se manifestar plenamente como Filho.
No próximo artigo, nesse blog, veremos ainda outros símbolos do relato de Caná e descobriremos o sentido da ação de Maria.
Texto: A. Murad, Maria Toda de Deus e tão humana, Paulinas.
Quadro de Fernando Gallego.