sábado, 13 de dezembro de 2008

Oração à Maria peregrina

Maria, fortalece-nos na nossa travessia.
Tu, que foste peregrina na fé, arriscando-te em Deus, renovando tua opção diante dos novos desafios, ajuda-nos a não parar no meio da estrada.
Quantas vezes, Maria, a escuridão nos invade a alma.
O desânimo toma conta de nós e não temos mais vontade de caminhar.
Mostra-nos que vale a pena, dá-nos a mão.
Jesus está conosco!
Ensina-nos, sobretudo, a descobrir, como tu, que a travessia é bela.
Amém.

Peregrina na fé

O evangelho de Lucas diz que Jesus caminha à frente dos seus discípulos, em direção a Jerusalém. Trata-se de um longo trajeto, narrado de Lc 9,51 a 19,28. É no caminho que Jesus vai ensinando aos seus seguidores uma nova forma de ver as pessoas e o mundo, de se relacionar com os outros e com o Pai. Pelo caminho, Jesus encontra pessoas que não agüentam as exigências do seguimento (Lc 9,57-61). Envia os setenta e dois discípulos em missão (Lc 10,1-17). Estando a caminho, entra num vilarejo, onde é recebido por Marta e Maria (Lc 10,38-41). Por onde passa, cura doentes (Lc 14,1-5). Reintegra os pobres e excluídos no convívio social. Cada encontro ou acontecimento é motivo de uma nova aprendizagem para os discípulos. Jesus fala do Reino em parábolas (Lc 12,16-48; 13,18-21). E revela o Pai misericordioso (Lc 15). Alerta para o perigo do apego às riquezas (Lc 16,13). Nestes 10 capítulos de Lucas, alternam-se fatos e palavras, expressões e gestos.
Jesus chama à conversão (Lc 13,5), esse movimento de mudança do mal para o bem, ou do bem para um bem maior. Muitas vezes, o seguidor de Jesus tem que mudar de rota, para se manter no caminho certo. Outras vezes, é só corrigir um pouco. Mas precisa estar sempre atento, com o espírito de aprendiz e o coração de criança. A travessia da fé e do seguimento é tão nova e original, que os discípulos têm dificuldade de compreender o sentido de muitas palavras de Jesus, que lhes parecem obscuras: “Mas eles não compreenderam nada. Esta palavra lhes permanecia velada e eles não sabiam o que Jesus queria dizer” (Lc 18,34).
Com Maria, a perfeita discípula de Jesus, acontece algo semelhante. Ela deu um “sim” decidido a Deus, quando era muito jovem. Iniciou uma travessia, que ela não sabia com detalhes aonde iria levá-la. Faz parte da experiência da fé arriscar, abrir-se ao novo, passar pela incerteza da noite escura. Ela teve que renovar seu compromisso com Deus muitas vezes. Como nós, estava sujeita a desviar da rota ou parar no caminho.
Muitos imaginam que Maria já nasceu como uma “santa prontinha e acabada”. Pensam que já sabia de tudo, já conhecia com detalhes o que ia acontecer com ela e seu filho. Alguns chegam a afirmar que ela teria sido poupada de fazer a travessia da fé. Já estaria, desde o começo, com todas as certezas. A partir de Lucas, vemos que essa idéia é equivocada. Na cena da apresentação de Jesus, Simeão dirige a palavra a Maria: “Eis que esse menino causará a queda e a elevação de muitas pessoas. Será um sinal de contradição, - e para você, uma espada traspassará sua alma – e assim serão revelados os pensamentos íntimos de muitos corações” (Lc 2,34s).
Normalmente, interpreta-se que a “espada”, da qual fala Simeão, seria o sofrimento na cruz. Podemos imaginar que Maria tenha experimentado uma grande tristeza, no momento da morte de Jesus. Naturalmente, a imagem da uma espada cortando a alma evoca tristeza. É comum usar a expressão: “isso me cortou o coração”, para expressar um sentimento de sofrimento, de dor. E a piedade cristã, especialmente a partir da Idade Média, moldou com muita força a imagem de Maria como a “Mãe das Dores” (Mater Dolorosa), sofrendo e chorando aos pés de cruz. Esta não é a mensagem transmitida por Lucas. O evangelista parece desconhecer a participação de Maria na paixão de Jesus. Na cena da morte de cruz, não cita a mãe de Jesus: “Todos os seus familiares se mantinham à distância, como também as mulheres que o seguiam desde a Galiléia e que olhavam” (Lc 24,49).
O sentido da expressão “espada que traspassa a alma” deve vir de outra analogia. Veja esta citação do profeta Isaías: “O Senhor fez da minha boca uma espada afiada”(Is 49,2), e da Carta aos Hebreus: “Pois a palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes. Julga as disposições e as intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença” (Heb 4,12s).
À luz desses textos, entendemos que a espada significa o desafio do próprio Jesus, Palavra viva de Deus. Maria foi desafiada pelas palavras e atitudes de Jesus, que eram tão diferentes das pessoas de seu tempo. À medida que Jesus diz ou faz algo novo, Maria se sente chamada a dar mais um passo na fé. Ela vive a experiência originária do seguidor de Jesus, de aprendiz do mestre. Tal interpretação, que pode nos parecer tão diferente, se confirma a partir da leitura do relato da perda e do reencontro de Jesus no templo. Leia Lc 2,41-50.
Ao ver Jesus adolescente, no meio dos mestres, Maria e José “ficaram tomados de grande surpresa” (Lc 2,48). Lucas antecipa aqui a consciência filial de Jesus em relação ao Pai, que na realidade só amadurecerá mais tarde: “Por que vocês me procuram? Não sabiam que eu devo estar junto do meu Pai?” A reação de Maria e de José é a mesma dos discípulos, já citada em Lc 18,34: “Mas eles não compreenderam o que lhes dizia” (Lc 2,50).
Maria não alcança ainda o sentido pleno das palavras de Jesus. Fazem parte do peregrinar da fé os momentos de escuridão, de compreensão limitada. Então, a razão se cala e alma se entrega a Deus, procurando um sentido mais profundo.
Logo após esta cena, aparentemente desconcertante para Maria, Lucas diz que Jesus volta para Nazaré, mostra-se um filho obediente, e passa pelas etapas de crescimento humano e espiritual: “Jesus crescia em sabedoria, idade e graça, diante de Deus e diante dos homens (Lc 2,51s)”. Como Maria enfrenta esta crise de crescimento? Fazendo memória, recordando, sendo aprendiz. “Ela guardava todos estes acontecimentos no seu coração” (Lc 2, 51).
Talvez o mais duro desafio que Maria enfrentou, em confronto com Jesus, foi aceitar posição de liberdade que ele tomou em relação à família. No tempo de Jesus, as relações familiares eram muito fortes. A pessoa se sentia dependente, por toda a vida, de seus pais, irmãos e parentes próximos. Deles recebia muitos favores e graças e se sentia na obrigação de retribuir. Devia manter a fama e o bom nome da família. Na família, a mãe trabalhava duramente, mas também tinha alguns privilégios. Controlava a vida dos filhos e era muito honrada por eles.
À medida que desenvolve sua missão, Jesus percebe que precisa estar livre para anunciar o Reino e falar da misericórdia do Pai. Ele faz uma ruptura difícil, que causou incompreensão no meio de seus parentes. Corta os laços de dependência com a família. E diz claramente que os membros de sua nova família são os que fazem a vontade de Deus (Lc 8,19-21). Jesus também incentiva seus discípulos a romper com essas relações familiares de dependência e a renunciar aos seus privilégios, para segui-lo mais de perto (Lc 18,28-30). Daí se entende a estranha frase de Jesus: “Se alguém vier a mim sem me preferir ao seu pai, à sua mãe, à sua mulher, aos seus filhos, aos seus irmãos e irmãs, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,33). Jesus não está condenando a família, mas denunciando um tipo de relação familiar que faz mal às pessoas, pois lhes tira a liberdade para servir ao Pai e ao Reino.
Como Maria enfrentou tudo isso? Deve ter sido difícil para ela renunciar aos privilégios de mãe, perder o controle sobre Jesus, não tê-lo dentro de casa. Jesus não pertence mais à sua família. Sua posição é uma espada cortante. Mas Maria dá um salto de fé. Aceita o desafio e corrige sua rota. Entra humildemente no grupo dos seguidores, dos aprendizes de Jesus. Aquela que educou Jesus na infância e juventude, agora está lá para aprender. Não tem lugar de destaque. Despojou-se de seu poder de mãe para se tornar discípula de Jesus. Que bela travessia na fé!
Nós temos muito que aprender dessa atitude de Maria. Ao olhar para ela, sentimo-nos mais animados, pois compreendemos que não estamos prontos, que a vida é uma travessia. Descobrimos também que até as crises de fé são oportunidades de crescimento. Reconhecemos que somos peregrinos na fé e nos colocamos, com alegria e humildade, no caminho do Senhor.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Oração: Maria e o Espírito

Bendita és tu, Maria,
templo do Espírito,
Morada materna do Filho de Deus encarnado,
Discípula ungida pelo Senhor Jesus.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Oração com Maria, aquela que frutifica na fé

Obrigado, Senhor, pois nos deste Maria como tua perfeita discípula.
Ensina-nos a acolher a tua Palavra, na fé.
Ajuda-nos a cultivar a interioridade.
Faze de nós “realizadores da Palavra”.
Multiplica em nós as sementes do Bem e os frutos do teu Reino.
Amém.

Frutificar com a fé

Lucas nos conta que, logo depois da anunciação, Maria sai às pressas para visitar sua parenta Isabel. Parte de Nazaré, na Galiléia, para outra região, a Judéia, distante dali no mínimo 50 Kilômetros. Leia o relato de Lc 1,39-45, que tem muitos elementos simbólicos.
Talvez Lucas não tivesse clara essa intenção, mas o povo, ao ler o texto da visitação, descobre que Maria é missionária. Transbordando da graça de Deus, não quer retê-la para si. Vai partilhar com sua parenta, de idade avançada, que está grávida e necessita de cuidados. Discretamente, ela já leva Jesus para os outros. Isabel sente logo o resultado. O feto se movimenta dentro dela. Quando se saúdam e se abraçam, o Espírito Santo inunda o ambiente e elas transbordam de alegria. Maria está cheia de Deus. Isabel também. Nessas duas mulheres grávidas se encontram, em semente, seus filhos João Batista e Jesus. Já estão, lado a lado, o precursor e o messias, o que prepara e o que realiza a Boa-Nova, o profeta de Deus e o Filho de Deus. Que lindo encontro! Isabel proclama: “Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre”(Lc 1,42).
Lucas coloca na boca de Isabel um louvor que faz eco de duas passagens das Escrituras Judaicas nas quais se reconhece a participação especial de mulheres no Povo de Deus. Em Juízes 5,24, se bendiz a Héber, por lutar contra a opressão dos cananeus, golpeando o homem Sísara. Em Judite 13,18-20 se louva Judite, que com coragem e estratégia, eliminou o general do exército da Assíria, Holofernes. Maria é colocada assim dentro da história das mulheres fortes do povo de Israel, que contribuíram para mudar a sorte da sua nação.
“Bendita” significa um louvor à pessoa e reconhecimento que ela é destinatária da benção e do favor de Deus. Reforça o sentido das expressões “cheia de graça” ou agraciada (Lc 1,28) e “encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,30), do relato da anunciação. Bendita entre as mulheres quer dizer: a abençoada por excelência. Isso não significa um mero privilégio, mas sim uma graça que possibilita a resposta mais intensa ao apelo de Deus. Em Maria se encontram a gratuidade do amor de Deus e a entrega generosa do ser humano, ou seja, a Graça e a Fé.
“Bendito é o fruto do teu ventre” significa que a fé torna Maria fértil de corpo e alma. Por causa de sua adesão a Deus, do seu compromisso com o projeto divino, Maria realiza a benção de fertilidade prometida ao povo de Deus no livro do Deuteronômio:
“Se tu obedeceres à voz do Senhor, essas serão as bênçãos que virão sobre ti e te envolverão: bendito serás na cidade, bendito serás nos campo; bendito será o fruto do teu ventre, o fruto do teu solo e dos teus animais. Bendito serás ao chegar e ao sair. A benção do Senhor estará em todas as tuas realizações” (Dt 28,1-4.6.8).
Conhecendo a fé de Maria, semeada, cultivada e amadurecida em belos frutos, podemos entender as reações e expressões de Jesus, narradas por Lucas, nos relatos da vida pública. Longe de ser uma ofensa à mãe, as palavras de Jesus revelam o segredo de Maria. Seu principal mérito está em ser uma pessoa de fé, que acolhe a palavra de Deus e a concretiza. Ser mãe é uma conseqüência de sua fé e uma forma dela realizar a vontade de Deus. Quando os familiares de Jesus vão procurá-lo e não conseguem alcançá-lo por causa da multidão, ele diz: “A minha mãe e meus irmãos são os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21).
Em outra ocasião, Jesus está falando à multidão, quando uma mulher grita repentinamente: “Felizes o ventre que te carregou e os seios que te amamentarem”. As imagens de “ventre e seios” aludem claramente à maternidade biológica. Dentro da cultura judaica da época, a mãe deveria receber os méritos de ter um filho tão importante. Jesus destaca novamente que a importância de Maria vem em primeiro lugar de sua fé ativa, que escuta a palavra do mestre e a transforma em gesto. Ele diz: “Antes, bem-aventurados (felizes) os que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lc 11,27s).
Alguns séculos depois, Santo Agostinho dirá que Maria concebeu Jesus primeiro no coração e depois no corpo. Antes de ser a sua mãe carnal, acolheu-o pela fé. Sem a fé, não adiantaria ela ter-se tornado a mãe do Senhor. Agostinho captou bem a mensagem do evangelista.
Resumidamente, qual é a principal característica de Maria, segundo Lucas? Ela encarna com fé a Palavra de Deus. Guarda-a no coração e a coloca em prática, dando muitos frutos. Esses são também os traços básicos de todo discípulo de Jesus. Pela sua fé, Maria é o exemplo do cristão, seguidor e aprendiz do Senhor. Em Maria, a fé se traduz em ser mãe, educadora e discípula de Jesus. Sua importância não reside em primeiro lugar na maternidade. E sim, na fé, compromisso radical e inteiro a Deus e ao seu projeto.
(Texto: Maria, toda de Deus e tão humana. A. Murad. Paulinas.
Imagem: Maria das Rochas, de Michelangelo, detalhe)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Oração: Dá-me memória!

Senhor, dá-me memória!
Tantas vezes Tu me visitaste, em quantos momentos fortes senti tua presença!
Como cores vivas de um dia de primavera, ou o cheiro único de flores e frutos.
Mas me esqueci.
As cores vivas desbotaram, o suave odor se misturou a outros.
Perdi a memória? Ou ela está escondida num canto qualquer?
Senhor dá-me a memória da fé.
Para que os acontecimentos não sejam somente fatos, mas sinais do teu amor.
Cria em mim, Senhor, a atitude de Maria, de meditar e guardar no coração.
Quero crescer no Teu amor e manter-me sempre encantado com a vida. Amém.

Maria guarda os acontecimentos no coração

Por duas vezes, Lucas diz que Maria guarda no coração os acontecimentos e procura descobrir o seu sentido. Na primeira vez, depois do nascimento de Jesus (Lc 2,19). Ela está contente e surpresa, como toda jovem mãe. Deve ter olhado seu bebê e lhe amamentado com carinho. O menino Jesus está envolvido em panos e deitado no local onde o gado se alimenta. Então, eles recebem a visita dos pastores. Quanta coisa para pensar, para meditar, para descobrir o sentido. Na segunda vez, Jesus está crescido. É adolescente, um rapazinho com seus doze anos. Curioso, cheio de iniciativa, ousado, Jesus se encontra no templo, conversando com os doutores. Ouve e questiona. Já antecipa, com esse gesto, o que vai fazer bem mais tarde. Diz uma frase que Maria e José não compreendem: “Vocês não sabiam que devo estar na casa de meu Pai”? (Lc 2,46-49). Maria, mesmo sem entender, guarda no coração. Pensa, reflete, medita, procura o sentido. Conserva a lembrança dos fatos. Faz memória (Lc 2,51).
Quando o evangelista põe duas vezes essa mesma atitude, no começo e no fim da “vida familiar” de Jesus, quer dizer que era algo constante em Maria. Ela cultivava um hábito, um jeito de ser. Maria vive um dos traços marcantes da espiritualidade do Povo da Bíblia: a memória, a recordação. A Escritura Judaica continuamente apela para que, recordando o passado, tenhamos gravado na mente e no coração como Deus fez maravilhas pelo seu povo, o escolheu e lhe deu uma missão. (Ver Dt 4,32-40).
Para ser fiel a Deus, o povo deve recordar que foi libertado do Egito, da casa da escravidão (Dt 6,12s), que caminhou muitos anos no deserto, passou por enormes dificuldades e foi educado por Deus (Dt 8,2-5). O Senhor fez com ele uma aliança, válida no passado e no presente (Dt 5,1-4). A infidelidade começa com o esquecimento. Apaga-se da “memória do coração” como Deus foi misericordioso com o seu povo. Os profetas trazem de volta a consciência perdida, denunciam o esquecimento, resgatam a atualidade da aliança. Por isso, clamam com tanta insistência: “Escutem!” (Is 48,1), “lembrem-se”!(Is 46,9). Recordar não é nostalgia, volta saudosa ao passado.Trata-se de recordar para acordar, tomar consciência, voltar-se para o Deus da Vida.
Diferentemente de outros povos, que faziam do culto religioso um resgate simbólico do ciclo da natureza, o povo de Israel cultua a Deus recordando-se da sua ação criadora e libertadora e renovando o compromisso com a Aliança. Muitos salmos são oração de memória, atualizadas para o presente em forma de súplica, louvor ou ação de graças (Veja Sl 44, 48, 78, 80, 85, 95, 98, 105, 135, 136). A recordação tem um efeito estimulador. No momento do sofrimento, da perseguição e do fracasso, mostra que a situação atual não é definitiva. Da mesma forma como Deus atuou no passado, criando a partir do caos e libertando desde a escravidão, irá conduzir seu povo para um momento novo (cf. Is 43,5-9).
Ao desvendar a personalidade espiritual de Maria como discípula do Senhor, que ouve e medita os acontecimentos, Lucas está tocando numa característica básica da espiritualidade bíblica. Mais ainda. Em leitura contemporânea, diríamos que este traço de Maria diz respeito a todo ser humano maduro e equilibrado.
Vivemos numa sociedade onde as coisas acontecem com muita rapidez. O ritmo de vida da cidade é acelerado. Levantar cedo, comer depressa, enfrentar o tráfego pesado, trabalhar e estudar, e voltar para casa tarde fazem parte da rotina de muitas pessoas. E nem o lar é lugar de sossego. Estamos cercados de sons do rádio e do CD, e do bombardeio de imagens da televisão. Com toda essa agitação e barulho, a gente tem muita dificuldade em parar e escutar a voz interior. Então, os acontecimentos passam por nós, mas não entram. São como água de tempestade sobre a terra, que cria enxurrada e erosão, mas não penetra.
Somos parte de um mundo com pouca memória. Fatos importantes, acontecidos há um ou dois anos, desaparecem da nossa lembrança, como se fossem passado remoto. Some-se a isto a sobrecarga de informações, que não temos tempo de assimilar. Vivemos um fenômeno pessoal e social, intimamente relacionado. Somos uma geração que cada vez menos alimenta a consciência histórica. A mídia cria fatos novos, que facilmente desaparecem de cena, dando lugar a outros. Não há tempo para deter-se, refletir, pensar, elaborar.
Ora, nutrir a consciência histórica exige refletira sobre os fatos, conferir-lhes sentido e estabelecer relação entre eles. Uma existência equilibrada e saudável exige a criação de um espaço interior, no qual a pessoa conecta os acontecimentos e procura seu sentido. Percebe então que sua vida não é um mero suceder de fatos, de experiências prazerosas e tristes, de vitórias e fracassos. Toma consciência dos processos, das metas a estabelecer. Avalia os passos dados. Saboreia as experiências afetivas e amorosas significativas, faz uma “memória do coração”, que o alimenta nos momentos difíceis. Com isso, pode manter vínculos afetivos duradouros e profundos. Pois o amor necessita de memória, para não se perder diante das crises.
À medida que a pessoa exercita esta atitude de “guardar no coração” e “buscar sentido para os fatos”, se transforma num aprendiz, num discípulo. Quando acontece alguma experiência forte, ela vai além do nível elementar, da satisfação ou dor. Procura descobrir o que aprendeu com a experiência. Cada novo desafio se transforma em aprendizagem existencial. Então, ela não envelhece. Mesmo que tenha idade avançada, está sempre aprendendo com a vida. Vai conquistando a sabedoria, que é o conhecimento com sabor e sentido, o saber que alimenta e unifica a existência.
O homem e a mulher espiritualizados não se caracterizam pela quantidade de orações e devoções exteriores que praticam. Antes, são seres humanos capazes de interpretar sua história à luz de Deus e aprender com ela. Percebem os sinais de Sua presença na existência pessoal e social. Cultivam a interioridade, como capacidade de dar sentido e unidade às múltiplas experiências da vida. Depois do ruído das muitas palavras, entram no silêncio de quem reverencia o mistério de Deus. NEle repousam e Dele buscam forças. Pois a meditação avançada alcança um estágio no qual escasseiam as palavras e os raciocínios. É entrega e presença. Recordação orante, silêncio, ação de graças, adoração e louvor.
Se compreendermos assim o cultivo da meditação como uma dimensão humana indispensável, como o caminho para o auto-equilíbrio e ser aprendiz da existência, descobriremos também um novo sentido para a relação entre ação e contemplação, pastoral e espiritualidade. De um lado, colocamo-nos à disposição do Projeto de Deus, realizando ações eficazes. De outro lado, precisamos nos recolher e silenciar. Quanto mais intensa e forte a missão, mais necessitamos “mergulhar em Deus”. Como diz o poema do compositor brasileiro Beto Guedes: “A abelha fazendo o mel, vale o tempo que não voou”.
Maria nos ensina a cultivar a interioridade, a meditar. Guardar as coisas no coração, buscar sentido nos acontecimentos e preparar-se para o que vai acontecer. Ela se parece com uma abelha que recolhe o néctar de Deus na vida e o transforma em mel. Colhe, recolhe, elabora e oferece doçura.
(Fonte: Afonso Murad, Maria toda de Deus e tão humana. Ed. Paulinas)